Sunday, November 26, 2006

Fábio Tremonte - Desenhos da imaginação afetiva


Os desenhos de Fábio Tremonte são resultados do desejo de uma vontade de projeção manifesta da interioridade e de um revelar o Mundo a partir de uma percepção particular. A subjetividade é, então, a força motriz de sua poética.
Valorizando as próprias características formais do desenho - a linha e o espaço - e a articulação entre estas, o artista estabelece com elas uma tensão suave de limites, criando obras que propiciam o jogo entre espaços internos e externos, entre figuras e planos. Ora pequenas figuras parecem oprimidas pelos vazios, ora o contrário – as figuras insinuam-se a tomar o plano por inteiro.
É, neste jogo espacial, entre o que é contido e o que contém, que também se abre possibilidade para a vontade comunicativa afetiva do artista - colóquio travado por imagens e escritas numa espécie de narrativa mnemônica. Soma das articulações de significados verbais e visuais que geram momentos que potencializam a poetização.
Na construção deste discurso visual, não linear, de Tremonte, a afetividade é seu filtro. A memória sua lente. E a imaginação, o lócus fertilizado pela carga da vivência tomada pelo sonho do que virá. As imagens postas pelo artista, portanto, também têm as qualidades deste mundo subjetivo e parecem recusar à existência concreta, querendo guardar suas características natas oferecendo resistência ao nosso mundo físico com suas qualidades intangíveis. Como não corromper o inefável ao dispô-lo com a matéria?
Assim, os desenhos do artista se pronunciam como um desejo expressivo, carregado pelo poder lírico que transborda em toda sua produção. Não são resultados de uma observação analítica da vida e do mundo. Mas frutos da experiência afetiva marcada pela lógica emocional.
As figuras, algumas recorrentes, desvelam o poder da síntese, característica intrínseca do desenho do artista, e que se reforça no todo de sua poética: poucos traços e poucas figuras. Enxutos em seus aspectos visuais aparentes, estes trabalhos abrem caminho para a potência da imagem e também da palavra. Desta maneira, surgem o feto, o pássaro, o corpo pendurado na corda, o coração e outras tantas figuras que são (ou não) emaranhadas a palavras como céu (cielo), solidão, run away, casa...
Os afetos, sugeridos pelo encontro de palavras e figuras, conotam situações e momentos registrados ou projetados. E, no campo de imaginação afetiva, tornam-se traduções imagéticas de sensações experimentadas.




Paulo Trevisan, 2006

ver também:

Tuesday, November 14, 2006

Thais Albuquerque - Arte e Vânitas


As obras de Thais Albuquerque nos provocam a inquietude. Sensação esta motivada pela constatação do efêmero das existências, dado pelo próprio fluxo da vida.
A artista trabalha com restos de materiais artísticos ou não - telas mofadas e rasgadas, objetos danificados, sobras de madeira, listas e enciclopédias antigas - muitos deles encontrados abandonados ao seu redor ou mesmo pelas ruas.
O processo de colagem e a utilização de métodos de gambiarra (enrolar, amarrar, pregar e prender) geram caixinhas, livros, pequenas engenhocas – que têm somados à sua superfície decalques e desenhos de traços enérgicos, quase toscos, de uma grafia nervosa e, ao mesmo tempo, delicada. Obras de tensão explícita entre uma apresentação rústica e elaborada, agressiva e delicada.
Thais compõe, com decalques colecionados e desenhos garatujados e borrados, sobre papéis ordinários e desgastados - folhas de listas de endereços, jornais e enciclopédias -, imagens que revelam a efemeridade das coisas do mundo. Nestas superfícies de registros gráficos impressos e corriqueiros vemos brotar crânios e outros ossos entremeados por flores, “santinhos” e crianças.
Em uma de suas séries, estas imagens são cobertas por folhas de vidro revestido com plástico contact. O vidro é quebrado por duros golpes, porém pemanece a unidade da placa graças ao plástico. Assim, harmoniza-se o revestimento e as imagens, e reforça-se a noção de fragilidade e perecibilidade das coisas. Em um outro trabalho, um pé de sofá é preso em um pedestal, no topo, uma lâmina de barbear está presa. Conforme a peça gira, dado que ela possui esse joga atrativo de mobilidade que convida o observador à brincadeira - a um desprender-se lúdico - a “garganta” do pé vai sendo cortada pela lâmina da gilete. Desta forma, a obra ao produzir o seu fascínio também propicia a sua falência.



A arte, como sistema desenvolvido no ocidente, principalmente após as conquistas de status de atividade intelectual pelos mestres renascentistas, se vincula a um fluir de vaidades, alimentado muitas vezes pelas próprias escolas de artes e em tantos casos pretendida pelos próprios artistas. Por outro lado, o objeto de arte como fetiche é a representação da vaidade envolta por posses e distinção cultural e econômica.
Olhar para os objetos findáveis, e até auto-destrutivos, de Thais, seus desenhos e colagens e não reconhecer neles o discurso da finitude das coisas e, portanto, da relação que se estabelece entre o tempo e a vaidade humana, torna-se difícil, senão impossível. Neste embate, as obras da artista evidenciam o seu amor pelos materiais ordinários, o que já foi descartado ou é extremamente comum e ataca frontalmente qualquer possibilidade de atrelar a produção artística, ou a imagem do artista, a esta noção de pompa e esnobismo. Porque, no que se refere ao agradável, à beleza estética ornamental e ao luxo dos materiais, seus trabalhos se vestem de um fazer malfeito, de sobreposições, arranhões, materiais pobres e uma precariedade que pode incomodar os observadores mais despreparados.
Nas imagens representadas – flores, crianças, ossos, santos – como não poderia deixar de ser, explicitam a proximidade revigoradora do mote presente nas pinturas do século XVII, as Vanitas, que se vinculam a um discurso de alerta às sociedades barrocas contra a mundanidade, a superficialidade produzida pelo amor às riquezas materiais e aos prazeres físicos do corpo. Se, por este caminho então, encontramos na produção de Thaís um pensar sobre o tempo e a finitude, devemos observar como este é afastado, por ela, das questões de cunho meramente religioso ou místico. Mas, como artista de seu tempo, desenvolve o que lhe interessa desta questão nuclear: a vaidade individual das pessoas e, principalmente, a vaidade no sistema artístico (em suas instâncias mais distintas como fazer arte, comprar arte, apreciar arte, e viver arte).
A cabo, seus trabalhos geram uma compatibilidade díspar. Com ternura e agressividade, força e delicadeza, Thaís transforma o que foi descartado daquilo que já nasceu não-nobre, em um grito de grostesca beleza - que envolve o banal e o fugidio, a perecibilidade humana e das coisas naturais ou construídas. Beleza esta encontrada tanto na arte como nas flores, no corpo, nos objetos e nas palavras, e não obstante, na ruína destes todos.


Paulo Trevisan, 2006


ver:

http://braziliandrawsandpaints.blogspot.com/2006/10/thais-albuquerque.html